quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Em 2009, não fui promovida, não recebi aumento, não ganhei prêmios e nem tive reconhecimento maior que o de todos os dias. Depois de muitas idas e vidas entre editorias, porém, consegui fazer as pazes com o trabalho. O resultado foram reportagens que, apesar de muitas vezes comuns, me deixaram feliz quando impressas nas páginas do jornal. Algumas foram sofridas, como esta que publico a seguir, divulgada originalmente na Folha de Londrina no dia 16 de setembro do ano passado. Durante as entrevistas, senti dor de estômago e a eterna sensação de impotência. No final, comemorei, principalmente por, mais uma vez, não ter sucumbido à indifença.

Abandonados antes de nascer
Mães viciadas em drogas negligenciam os filhos; Em Londrina, pelo menos dez gestantes dependentes são identificadas mensalmente

A dependência das drogas pode ser mais forte que sentimentos considerados inabaláveis, como o amor incondicional e o vínculo que une mães e filhos. Em Londrina, apenas na Maternidade Municipal Lucilla Ballalai, pelo menos dez recém-nascidos filhos de mães usuárias de drogas foram encaminhados mensalmente à Vara da Infância e Juventude ou ao Conselho Tutelar em 2009por correrem riscos de serem negligenciados pelas próprias genitoras após a alta do parto.

Sono excessivo, falta de documentos pessoais, ausência do cartão de pré-natal das Unidades Básicas de Saúde (UBS), rejeição do bebê, ansiedade, comportamento exagerado e ''teatral'' com relação aos cuidados da criança e até mesmo o cheiro característico do crack são alguns dos sinais observados pela equipe de psicologia e assistência social que podem evidenciar, na mãe, a condição de usuária de drogas.

Após o nascimento, a saúde do bebê também é indicativo do vício. A pediatra e neotalogista Cristina Mara da Silva, que atende na maternidade, esclareceu que as crianças apresentam problemas de baixo peso por desnutrição aguda, doenças sexualmente transmissíveis como sífilis, gonorreia ou aids e, em casos extremos, sintomas de crise de abstinência pela falta da droga, caracterizadas por choro excessivo, irritabilidade e tremores.

A maioria dos problemas, segundo ela, é resolvida com acompanhamento médico. Somente no caso de dependências crônicas é que observa-se a atrofia cerebral que compromete o desenvolvimento do bebê. ''De qualquer maneira, são crianças extremamente agredidas.''

A assistente social Luciana Mazzarotto Negrini Cortez e a psicóloga Lisnéia Rampazzo, ambas da Maternidade Municipal, explicaram que os sintomas da mãe e do bebê também podem indicar outras dificuldades, como gravidez na adolescência, tristeza materna ou mesmo pobreza. ''Por isso, quando suspeitamos de dependência química, fazemos uma investigação mais aprofundada'', esclareceu Luciana.

Se o diagnóstico é confirmado, a assistente social entra em contato com familiares da mãe para saber se têm intenção de cuidar da criança. Ao assumirem a responsabilidade, os parentes são acompanhados pelo Conselho Tutelar para garantir a proteção necessária ao bebê.

Se a família rejeita a criança, a solução é o abrigamento em instituições e encaminhamento para a adoção. De acordo com a promotora da Vara da Infância e Juventude, Edina Maria de Paula, a única possibilidade da mãe manter a guarda do filho é o ingresso em programas de reabilitação. ''Normalmente elas não dão conta de fazer o tratamento. São pessoas que não têm sonhos, vivem apenas o imediatismo do uso das drogas', afirmou.

A promotora lembra que os casos de abandono são reincidentes. ''A família acolhe o primeiro e o segundo bebê. Quando nascem outras crianças, não querem mais saber'', lamenta, acrescentando que a maioria das mães dependentes químicas não possui vínculo familiar e apresenta histórico de vários filhos rejeitados.

Luciana ressaltou que, neste ano, apenas uma usuária de drogas identificada pela equipe da maternidade aceitou o abrigamento para poder ficar com o filho. A grande maioria demonstra intenção de abandonar o vício e encara o bebê como uma ''salvação''. Pouco tempo após a alta, entretanto, sucumbem novamente às ruas e às drogas.


'Estava chapada e não liguei'

Márcia (nome fictício), 33 anos, passou por três gestações e deu à luz três crianças. Ex-moradora de rua em Londrina, com histórico de uso de drogas e prostituição, ela é mãe de verdade apenas da filha mais nova, de um ano. Os outros dois foram retirados e encaminhados para adoção por causa do vício materno. ''Fiquei com meu primeiro filho até os dois anos e com a segunda filha até mais ou menos essa idade. Mas aí voltei para as drogas e eles foram levados para a adoção.''
Tentando novamente mudar de vida, Márcia encontra-se abrigada com a menina mais nova. Empregada em uma firma e responsável por todos os cuidados com a garota, ela acredita estar mais madura para enfrentar o risco de recaídas. ''Das outras vezes, voltei a me drogar na hora em que as coisas não davam certo'', disse ela, que não sentiu nada no momento em que retiraram-lhe os filhos. ''Estava chapada e não liguei. Depois veio o arrependimento, mas era tarde'', disse.
Mãe que negligenciou os filhos por causa do vício, Márcia tem uma história pessoal marcada pelo abandono. Aos 9 anos, perdeu a mãe e fugiu de casa por não ser aceita pela nova mulher do pai. ''Ele preferiu ficar com ela'', lamentou.
Moradora de um abrigo até os 12 anos, envolveu-se com más companhias e fugiu. Adolescente, começou a cheirar cola e tinner pelas ruas, abrindo caminho para o crack e a prostituição que permitia a aquisição de novas drogas.
Dos pais das crianças, não tem notícias, apesar de terem sido considerados namorados. Sem ter certeza sobre o futuro, ela tenta diariamente sobreviver à vontade de usar drogas e sonha em ter uma casa própria para criar a filha, que felizmente nasceu sem sequelas. ''Foi uma sorte, porque me droguei até o último dia de gravidez.''


Vizinha acolhe filho de mulher dependente

O curto período de 48 horas entre o internamento das gestantes e a alta nem sempre é suficiente para que os profissionais da Maternidade Municipal identifiquem e encaminhem as dependentes e seus filhos. ''Infelizmente, é possível que muitas mães usuárias de drogas tenham deixado a maternidade antes que pudéssemos interferir'', afirmou a assistente social Luciana Cortez.

É este o caso de um bebê que, nascido com desnutrição, refluxo e candidíase, encontrou abrigo na casa de uma vizinha da mãe num bairro carente de Londrina. ''Ele tinha pouco mais de um quilo quando saiu do hospital. A mãe dava o peito, mas usava muita droga'', conta a mulher. ''Todos achavam que ele ia morrer.''

Os avós maternos, que já cuidam de outros irmãos do bebê, não tinham condições financeiras de receber mais um neto. ''Eles também não queriam dar para adoção, por isso, acabei ficando'', contou ela, acrescentando que o recém-nascido passou várias semanas sem registro de nascimento. ''Os avós levaram para registrar e depois me devolveram.''

Aos quatro meses, a criança ganhou bastante peso, recuperou-se das doenças e tem sido acompanhada na unidade de saúde do bairro. ''Os pais passam o tempo usando drogas e não procuram o filho. Cheguei a aconselhar a mãe, mas o que a gente fala não entra na cabeça dela'', lamentou.

Lisnéia Rampazzo, psicóloga da maternidade, explicou que o grau de dependência química da mãe costuma ser inversamente proporcional ao investimento emocional que ela faz na gravidez. ''Se a gestante é muito dependente, a criança não é prioridade na vida dela.''

Para o bebê, a falta de um referencial de cuidador gera o sentimento de desamparo, que acaba sendo amenizado quando ele é inserido em um novo ambiente de cuidados, seja com familiares ou na adoção. ''No caso de ser adotado por uma nova família, recupera-se o prejuízo da falta de referencial materno.''

A psicóloga considera que a doação da criança para a adoção é também um ato de amor da mãe biológica.''Ao reconhecer a falta de condições de cuidar do filho e abrir mão da criança, ela está pensando no bem estar do bebê.''


Vício associa-se à miséria

A realidade observada pelos profissionais que lidam com gestantes viciadas em drogas mostra que a dependência quase sempre associa-se à miséria. ''É através das drogas que elas suprem necessidades como fome e frio'', avaliou Nelma dos Santos Assunção, coordenadora do projeto Casa Abrigo Pão da Vida, que recebe mulheres nas condições citadas.

Ela informou que as gestantes abrigadas na instituição são, na maioria das vezes, moradoras de rua, usuárias de drogas e que se prostituem para conseguir os entorpecentes. ''Elas chegam sem saber o tempo de gravidez ou sem ter realizado qualquer exame pré-natal. São crianças não desejadas e em situação de risco.''

Apenas na semana passada, três gestantes usuárias de drogas estavam abrigadas no Pão da Vida. ''Duas já manifestaram o desejo de doar as crianças antes de sair da maternidade'', revelou. As mulheres procuram a instituição apenas quando não têm mais condições de permanecer nas ruas. ''Se elas quiserem ficar com o bebê, podem voltar para o abrigo.'' Nelma relatou também que essas mães alternam comportamentos de profunda rejeição à gravidez com momentos de aceitação, quando sentem culpa pelas recaídas durante a gestação.


Caminho para a violência e a negligência

''Toda criança ou adolescente tem direito a ser criado e educado no seio da sua família e, excepcionalmente, em família substituta, assegurada a convivência familiar e comunitária, em ambiente livre da presença de pessoas dependentes de substâncias entorpecentes''. O artigo 19 do Estatuto da Criança e do Adolescente resume como deveria ser o ambiente ideal para o desenvolvimento das crianças. A realidade, porém, é diferente. Por isso, instituições que lidam direta ou indiretamente com meninos e meninas em situação de risco articulam-se para fortalecer a rede de enfrentamento à violência. O objetivo é uniformizar o atendimento nos órgãos que lidam com essa realidade para que as vítimas sejam corretamente encaminhadas.

O médico Renato Mikio Moriya, coordenador da Comissão Municipal de Enfrentamento à Violência Contra Crianças e Adolescentes, enfatizou que, durante a gravidez, a gestante usuária de drogas é quem deve ser tratada, visto que o feto ainda não é considerado sujeito de direito. ''Se ela recusa tratamento e não suspende o uso de drogas, pode ser notificada judicialmente por violência.''

No caso das menores de 18 anos, o Conselho Tutelar e a Vara da Infância e Juventude podem solicitar o tratamento compulsório visando proteger a saúde da mãe. Em se tratando de adultos, porém, não há amparo legal para que esse tipo de medida seja tomada. Após o nascimento, Moriya explicou que, se a mãe continua com os mesmos hábitos de antes da gravidez, pode perder a guarda do filho por colocá-lo em situação de vulnerabilidade. ''A droga abre caminho para a violência e a negligência.''
Ainda divagando sobre o tempo, ele passa rápido e devagar. Essa semana, no trabalho, uma pauta derrubada paralisou o relógio às 10 horas. A ronda policial, os servicinhos burocráticos de todo dia, o café e as lições sobre o sistema editorial ao novo colega não foram capazes de mover os ponteiros para além das 11 horas.
Em casa, vasculhando em roupas guardadas - na época - para um possível segundo filho, fiquei em dúvida se aqueles vestidos e shorts enormes, comprados quando Ceci já não era bebê fazia tempo, serviriam na menininha que há pouco usava fraldas. Chamei Clari para experimentar e – quase de costas no chão – constatei que muitos conjuntinhos tamanho 4 estavam prestes a ficarem apertados.
Coloquei as roupas na máquina de lavar e, na volta, me deparo com Ceci ensimesmada, rodeada por uma boneca, uns retalhos de tecido, brinquedinhos e pedaços de papel cheios de bilhetinhos e notas sobre assuntos importantes do tipo hannah montana, high school musical e esquiletes.
Me dei conta que a menina de quase oito anos é tão independente que tornou-se capaz de passar o tempo sozinha, envolta nos próprios pensamentos. Antes “grudenta”, ela agora se distrai por conta própria, num universo paralelo que não mais me pertence. Paro na porta do quarto e fico observando a veterana do ensino fundamental que há três ou quatro anos desfilava as roupas da sacola de guardados. E, de repente, os vestidos e shorts enormes me pareceram muito, muito pequenos.

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Voltei a andar pela Rua Guaporé. O contrabaixo não pesa mais nas minhas costas. Meus passos, entretanto, continuam lentos, atrasados pelas passadas pequeninas da menina de quase três anos a caminho da escola. As esquinas há tempos não abrigam estúdios roqueiros, mas as lojas de materiais de escritório e todo tipo de oficinas de consertos indicam que a vocação da rua sobreviveu às reviravoltas da minha vida.
Forço a memória, mas não consigo ter lembranças do centro de educação infantil que hoje é meu destino diário. Talvez porque, há dez anos, eu andasse pela Guaporé com a cabeça ocupada por letras de música, riffs de guitarra e planos que se concretizavam, no máximo, ao fim da madrugada seguinte.
A paisagem urbana não desperta impressões sobre pessoas estranhas tomando cerveja, dançando forró e saindo de si nos botecos entre o Terminal Urbano e o estúdio revestido de caixas de ovos. No início do dia, chama-me a atenção a fila de desempregados na porta do Sine, o trânsito lento e outros acontecimentos cotidianos que podem “render pauta”.
A conversa da menininha curiosa, encantada com a própria capacidade de atravessar quatro quarteirões puxando a mochila do ursinho Pooh que acomoda uma troca de roupas e uma agenda, diverte tanto quanto as antigas divagações com amigas de guitarra e baquetas.
Tão cedo na rua, pensando em matérias depois de ter preparado café da manhã, fiscalizado duas mochilas, vestido dois uniformes e escovado duas boquinhas cheias de dentes, quase me convenço de ter sido realmente premiada com um super neurônio que, dez anos atrás, também tornava-me capaz de tocar punk rock, frequentar inferninhos underground, trabalhar no dia seguinte e ainda entregar trabalhos que rendiam nota máxima na faculdade.
No caminho de volta, penso sobre o espaço que os acontecimentos ocupam na memória. Hoje, andando pela Guaporé, as lembranças mais vivas vêm dos estúdios, das noites, das cervejas, das canções. Em uma década, quando passar pela mesma rua, é certo que a lembrança mais emocionante será a da menininha engraçada, curiosa e arteira, encantada com a própria capacidade de atravessar quatro quarteirões puxando uma bolsa.